A Reportagem Original

1964 – visto, anotado e comentado pela Casa Branca

Jornal do Brasil, 19/12/1976

“Espero que os visitantes que aqui vierem possam adquirir uma compreensão mais íntima do funcionamento da Presidência, que afeta tão profundamente as suas próprias vidas.” 

Do Presidente Lyndon Baines Johnson, na biblioteca que a Universidade do Texas criou para os documentos do seu Governo.

Na tarde de 30 de março de 1964, duas mensagens alteraram a roti­na das comunicações entre a subsecretaria do Departamento de Es­tado em Washington e o serviço diplomático norte-americano no Brasil. A primeira era especial para a Embaixada, então funcionando no Rio de Janeiro, e dizia: De modo a apressar a distribuição a todas as agências interessadas e a eliminar a necessidade de retransmissões, pede-se que até segunda ordem vocês incluam a Casa Branca, o OSD, o JCS, o Cincsouth e a CIA entre os destinatários de todos os telegramas referentes a matérias relevantes.

A segunda mensagem foi recebida por todos os consulados e pelo escalão avançado da Embaixada em Brasília. Era um alerta: Informem diretamente a Washington e repitam para a Embaixada todos os desenvolvimentos significativos em relação à resistência militar ou política ao regime de Goulart. Todos os postos devem manter um alerta de 24 horas para estes acontecimentos.

Com esses dois breves avisos, o Governo dos Estados Unidos pode montar à véspera da deflagração do movimento um plantão que lhe permitiu acompanhar passo a passo, hora a hora em muitos casos, toda a Revolução de 1964, da partida do General Mourão Filho em Minas Gerais à chegada do Presidente deposto João Goulart ao Uru­guai. Graças a essas mensagens, também, é que informações vindas de fontes tão diversas, como a CIA e o Consulado em São Paulo, es­tão hoje reunidas nos arquivos do Presidente Lyndon Johnson. Nor­malmente, se dispersariam por arquivos diversos da administração, desapareceriam na rotina das caixas empilhadas.

Juntas, elas formam uma descrição minuciosa da Revolução de 1964 e um depoimento muito significativo de como o Governo norte-­americano estava preparado para acompanhar e, se preciso, ajudar o movimento. Mas não compõem uma história de espionagem, segun­do os estereótipos da novela policial.

Vistos a uma distância de 12 anos, esses papéis se prestam a reto­car detalhes dos acontecimentos de 1964 que, sem eles, acabariam por se incrustar na história política brasileira mal lapidados, com erros e cantos escuros. É basicamente à História que hoje interessa saber, por exemplo, o papel que teria realmente desempenhado o Embaixador Lincoln Gordon nas decisões daqueles dois dias.

Não é um papel tão influente quanto se insinuava na frase que, durante o Governo Castello Branco, aparecia rabiscada em cartões de chope nos bares da Zona Sul: “Basta de intermediários – Lincoln Gordon para Presidente.” Contudo, dias depois de convocado para o plantão de 30 de março, Gordon receberia, pelo telex, cumprimentos especiais do Assistente Especial da Presidência para Assuntos de Segurança Nacional, McGeorge Bundy. Bundy: Bundy elogiou-lhe o “sangue-frio e a qualidade das informações”, como se ele fosse o comandante de uma campanha vitoriosa. O mesmo Bundy, meses mais tarde, rascunharia ao pé de um memorando da Casa Branca um co­mentário: Gordon não se estaria tornando emocional demais em re­lação ao Brasil?

Gordon sabia de tudo

O papel do Embaixador Lincoln Gordon, por outro lado, também não corresponde à versão que ele criou. Era certamente mais bem infor­mado do que admitiu nos depoimentos prestados ao Senado ameri­cano sobre suas atividades no Brasil e numa entrevista em 1971, deu à revista Veja. Nela, disse sobre os rumores de que navios da Ma­rinha norte-americana teriam sido deslocados para a costa brasilei­ra com a missão de, se preciso, socorrer os revolucionários: “Não. É possível que tenha ocorrido algum movimento da frota, mas isso se deveria ao fato de que na época existiam 40 mil americanos no Bra­sil, e toda Embaixada tem sempre um plano de retirada de emergên­cia para os nacionais.”

Mas os canais de telex ligados entre a Embaixada e a Casa Bran­ca contam outra história: havia uma operação para eventualmente dar apoio à Revolução, chamava-se Brother Sam. Tinha como objetivo principal evitar o estrangulamento da Revolução no que era considerado seu ponto vital – a falta de combustível, na hipótese das lutas se prolongarem, E Gordon não apenas sabia do plano. Tinha a responsabilidade de acioná-lo.

Na entrevista, ele atribuía a simples gafe diplomática e falta de informação o fato de que o Governo americano tivesse reconhecido o novo regime brasileiro quando João Goulart ainda se encontrava no Rio Grande do Sul Não foi assim. Em conferência por telex com o Departamento de Estado, que manteve uma extensa rede de agentes na pista de Goulart, duas vezes no dia 2 de abril advertiu o Em­baixador para o fato de que o ex-Presidente ainda estava no Brasil. Discutia-se, nesse caso, o momento adequado para Washington re­conhecer o novo Governo. E a conclusão foi que a hora tinha chegado.

Nem tudo foi exatamente como o Embaixador desejaria. Ele dis­se, na entrevista, do Ato Institucional de abril de 1964: “Foi um cho­que. Tanto o conteúdo quanto o raciocínio de seu preâmbulo eram a negação de todos os princípios que eu considero importantes.” Mais do que exato, ele estava sendo discreto. Ele de fato reagiu à edição do AI-l e disso ficou o sinal em sua correspondência. No dia 10 de abril, ele transmitia a seguinte mensagem ao Departamento de Estado: “Devo confessar o considerável desalento diante dos fatos de terça-­feira que levaram à promulgação na noite passada do Ato Institu­cional como fait accompli, sob a exclusiva responsabilidade dos ministros militares (…). Os aspectos que mitigam essa situação são estes: (a) o Congresso não está fechado, embora a Presidência tenha sido muito fortalecida em relação ao Congresso; (b) o limite de seis meses para a suspensão de certas garantias constitucionais; (c) a con­firmação das eleições presidenciais no ano que vem, em data previs­ta pela Constituição de 1946; (d) a limitação da aplicação de todo o Ato Institucional a um período que expira em 31 de janeiro de 1966; e (e) a conservação, intacta, do sistema federativo com autonomia dos Estados. Adiante, acrescentava: “A maior esperança na contenção de excessos antidemocráticos repousa no caráter e nas convicções de Castello Branco.”

Menos de cinco anos depois da entrevista do Embaixador Lincoln Gordon, os documentos do Governo americano relativos ao perío­do – oficiais, reservados, sigilosos, secretos e ultra-secretos – estão abertos à consulta no oitavo andar da Biblioteca Lyndon Baines Johnson, em Austin, Texas. E a rapidez do processo de reclassificação de documentos nos Estados Unidos precisa ser lembrada em favor

da palavra de Gordon: ele estava falando, com reservas profissionais, de fatos contemporâneos; a biblioteca está fornecendo subsídios à História.

As mesmas duas mensagens que, no dia 30 de março de 1964, dis­tribuíram por vários canais de telex as comunicações entre a Em­baixada no Brasil e Washington resultaram na riqueza de informações sobre a Revolução na Biblioteca LBI, onde foram parar os documen­tos de Johnson. A parte relativa à Revolução de 1964 inchou, a partir de 1975, devido ao esforço de uma estudante da Universidade do Texas, que prepara uma tese – Distantes mas Semelhantes – sobre o imbrincamento das relações Brasil-Estados Unidos naquele perío­do. A pesquisadora, Phyllis Mark, fez as solicitações, obteve a desclas­sificação de centenas de documentos.

Ali, no oitavo andar do edifício, eles podem ser examinados numa sala de que a parede diante da entrada traz, numa placa em bronze, a dedicatória que o ex-Presidente Johnson fez de seus arquivos: “Que os visitantes que aqui vierem adquiram uma compreensão mais Ín­tima do funcionamento da Presidência, que afeta tão profundamen­te as suas vidas.” No que diz respeito ao Brasil de 1964, esse voto se realiza na quase plenitude.

Em 24 horas, ajuda econômica

A primeira impressão que advém da leitura dessas pastas é a desco­berta de como a burocracia americana foi capaz de montar, com ante­cipação, um sistema de informações sobre a derrubada de Goulart tão preciso que era capaz de antecipar, por horas, o próximo passo dos conspiradores; tão bem regulado que desvendava, no mesmo dia, o que se conversara em encontros privados no quarto de hospital em que se internara o Ministro da Guerra, General Jair Dantas Ribeiro: tão minucioso que não desprezava um balanço regular do noticiário da imprensa. O acompanhamento da Revolução de 1964 foi feito, em Washington, através de relatos que se sobrepunham, em níveis dife­rentes de complexidade, importância e exuberância de fontes.  

Distribuídos, esses relatórios acionavam todas as decisões do Governo americano diante da situação política brasileira. Os des­pachos e as análises de Gordon serviam, no canal de telex do Esta­do-Maior Conjunto, para orientar a frota deslocada para a costa brasileira. Na Casa Branca, pautaram a reunião interministerial que, já no dia 1º de abril, tratava em Washington de preparar um programa de emergência para a ajuda econômica ao novo Governo brasilei­ro, que sequer estava definida. Compactados, chegavam ao Presidente Johnson na forma de memorandos de Bundy, raramente com mais de 10 linhas: “Não há mudança substancial na situação em relação ao que foi informado esta tarde pelo secretário Ball. Se o senhor de­sejar mais detalhes, chame qualquer um de nós ou Tom Mann”, afir­mava, por exemplo, o memorando ao Presidente do dia 31 de março, sete horas da noite.

Do funcionamento da Presidência dos Estados Unidos, estas pas­tas revelam muito sobre a qualidade das informações com que ela trabalha. Assim, no dia 30 de março, a CIA despachava: “Uma revolu­ção pelas forças anti-Goulart irá definitivamente estourar esta sema­na, provavelmente dentro dos próximos dias. Negociações de último minuto estão agora em desenvolvimento, envolvendo Estados sob o controle de Governadores democráticos (…) São Paulo seguirá Mi­nas Gerais se a Revolução começar ern Minas.” Pouco mais tarde, um outro informe, mandado de São Paulo, encurtava o prazo: “Será den­tro de 48 horas.” Não se tinha, é verdade, o dom da adivinhação, pois o mesmo relatório dizia que “a Revolução não será decidida rapidamente e será sangrenta.” Mas era um trabalho muito mais completo do que o mandado, à mesma hora, de Brasília – uma súmula das especulações que se faziam no Congresso e que os diplomatas na ci­dade captaram.

Tantos relatórios de tantos canais da administração norte­-americana, reunidos na Casa Branca e, em conseqüência, na Biblio­teca LBJ, produziram um material que de outra maneira seria fragmentário. Ele torna possível a reconstituição pormenorizada dos dias iniciais da Revolução, mas não explica tudo sobre o modo como os Estados Unidos começaram a armar todo o aparato em torno da queda de Goulart. As ordens para a distribuição dos telex datam do dia 30. Todas as informações anteriores, inclusive as que levam à montagem dessa operação, são rarefeitas e podem conduzir a pis­tas falsas.

Pode ser uma delas a suposição de que o rastro recue até 27 de dezembro de 1963, quando um memorando para Bundy encaminha­va o pedido de uma audiência com Johnson. Seria para o Embaixa­dor brasileiro Roberto Campos. Ele “está deixando Washington em 11 de janeiro para voltar ao Brasil. Ele foi um destacado Embaixador e está encerrando seu serviço a pedido próprio. É intenção do Em­baixador envolver-se em atividades políticas depois de sua volta ao Brasil e espera-se que sua influência seja efetiva e substancial nos próximos anos. O Departamento recomenda que um arranjo seja providenciado para urna visita de cortesia ao Presidente antes de sua partida.” Na época acreditava-se no Brasil que Campos deixava o Itamarati pela iniciativa privada.

Como era desejo do doador de todos os papéis, o que na Biblio­teca existe sobre o Brasil ilumina melhor o funcionamento da Casa Branca do que as suas bases em operação no exterior. É surpreenden­te, por exemplo, que em resmas e resmas de papel o nome do General Vernon Walters, o adido militar que parecia ter acesso a diversos oficiais brasileiros, apareça apenas duas vezes. Em outro, menciona­do em código, ARMA, é o autor de um perfil exato e íntimo do General Castello Branco, num relatório assinado por Gordon, mas do qual Walters hoje reconhece a autoria com uma frase temperada pela amizade: “Eu escreveria isso tudo outra vez.”

Os agentes secretos não deixam jamais o anonimato, mesmo nos papéis mais confidenciais. A natureza de suas relações com os infor­mantes brasileiros também não transparece. E não se pode surpreen­der nos documentos uma evidência que permita afirmar como era feita a canalização de informações diretamente dos centros de cons­piração para o serviço secreto norte-americano. O fato é que ela hou­ve e foi eficaz.

Mas também é surpreendente que, no mesmo dia 30 de março, a ClA pudesse obter em Belo Horizonte todos os planos da Revolução para o dia seguinte, enquanto o Cônsul gastava dezenas de linhas de telex para relatar a Washington uma conversa pessoal com o Gover­nador Magalhães Pinto da qual não tirara uma só informação valio­sa. Foi a personalidade do Governador ou o seu zelo que o salvou de ter, 12 anos depois, uma indiscrição arquivada em Austin?

No dia 4 de abril, chegou ao Departamento de Estado um infor­me a essa altura já ultrapassado por comunicações de outras fontes, dando conta da escolha de Castello Branco para a Presidência. Ao pé desse despacho, contudo, estava registrado: “O rádio-escuta local gra­vou uma conversa entre Goulart, em São Borja, e Kubitschek, que des­creveu seu plano para propor um candidato deles à Presidência da República. A conversa gravada foi entregue a um importante com­panheiro de Lacerda, que não planeja tornar pública essa gravação, mas divulgá-la entre líderes militares e políticos para provar a duplicidade de Juscelino.” Até que ponro essa troca entre serviços de inteligência e os conspiradores brasileiros seria consciente é uma questão que os documentos propõem mas não respondem.

Há revelações desconcertantes, como a que ficou no telex de 31 de março: “Um deputado federal do PTB, que estava planejando deixar hoje o Rio para viajar a Brasília, avisou à Embaixada que ele ti­nha sido procurado por um líder não identificado do PTB, da extre­ma esquerda, que lhe recomendara ficar no Rio.” E comentários mandados de Washington a sugerir um envolvimento muito profun­do com a situação brasileira. Também em 31 de março, Gordon era solicitado a fornecer subsídios “para montar um largo programa de ajuda material que assegure o sucesso do golpe”.

Como partiam de fontes diversas, as informações não corriam de maneira exatamente paralela até Washington. No dia 2 de abril, en­quanto o Departamento de Estado ainda se preocupava em recolher informações sobre a possibilidade de que o banqueiro Gastão Vidigal fosse escolhido Ministro da Fazenda de Mazzilli, a CIA., em cujas bio­grafias o Presidente em exercício do Brasil figurava com leves incli­nações esquerdistas, já estava cuidando das informações disponíveis para o futuro próximo: tratava da escolha de Castello Branco.

Gordon, que no dia 6 de abril recomendava ainda que a ajuda econômica ao Brasil fosse concedida “mesmo se as coisas aqui não estejam exatamente como queríamos” – ele acabara de receber uma recomendação do Secretário de Estado, Dean Rusk, para intervir jun­to ao Governo contra as invasões de casas de suspeitos ao regime­ – afirmou mais tarde que teria ficado chocado, a ponto de pensar na renúncia, ao saber, no dia 9, do Ato Instituc1onal. Mas a ClA já avi­sava, neste mesmo 6 de abril: “Espera-se que um Ato Operacional Re­volucionário será baixado pelo General Costa e Silva, o Chefe das Forças Armadas brasileiras com vastos poderes autoritários para usá-los até 15 de abril, quando o General Castello Branco será nomeado novo Presidente do Brasil, O Ato Revolucionário já tem a aprovação de oito governadores que apoiaram a Revolução, do líder da UDN, Auro de Moura Andrade, Presidente do Senado, do líder do PSD, Ernani do Amaral Peixoto, e do ex-Presidente Juscelino Kubitschek. O Ato foi redigido por Bilac Pinto, presidente da UDN, e por Ferreira de Souza.” Como o Ato tem autoria muito conhecida, os juristas Fran­cisco Campos e Carlos Medeiros Silva, pode-se alegar que o informe da CIA tivesse errado o alvo. Mas uma coisa é certa: o dado essencial, que o instrumento vinha e já estava até pronto, ele continha. O rela­tório dizia inclusive que, com ele, o Chefe do Governo teria poderes para cassar mandatos.

Um certo tear de mal-entendidos e de confusão a história daqueles dias deverá carregar para sempre. Um exemplo: no momento exato em que se atribuía aos boatos sobre a intervenção norte-americana um re­síduo de puro antiamericanismo, um amigo do presidente Johnson mandava-lhe uma carta entusiasmada de aplauso. “Só um breve bilhete para dizer-lhe que eu e Tharon ficamos eufóricos com a sua intervenção no Brasil e no Panamá. É esse tipo de liderança que nos dá esperança no futuro. Poder!” Datada de 6 de abril e guardada por Johnson, ela ficou de lembrança, a mostrar como as paixões, pró e contra, se equivalem.

Houve reação ao AI-5

Do recuo que seis anos passados proporcionaram, pode-se julgar o papel dos Estados Unidos na Revolução sobre muitos ângulos. Contada pela correspondência secreta, surge na história um personagem inesperado, um Embaixador Lincoln Gordon cujo empenho em salvar as instituições da democracia brasileira de queimarem nos ardores revolucionários parece até ingênuo, mas nunca falso. Sua reação ao AI-2 soava, em 1965, a decepção autêntica.

Assim também, em 31 de dezembro de 1968, numa pasta onde ainda restam centenas de documentos a liberar, ficou um memorando da Casa Branca para McGeorge Bundy. Vinha do Embaixador John Tuthill, que sucedeu a Gordon e assistira no país ao desabrochar sob AI-5. Diz o papel:

“No telegrama anexo nossa Embaixada no Rio propõe uma postura política para nossa ajuda econômica ao Brasil em face do novo Ato Institucional”. Na essência, ele se resume a um frio “esperar para ver”. “Se as recomendações do Rio forem seguidas, nós deveríamos atrasar por algum tempo a concessão de créditos de 50 milhões de dólares do nosso programa de empréstimos; colocar no congelador toda a discussão sobre o novo programa e o pacote de empréstimos setoriais para 1969; continuar negociando novos créditos já autorizados; continuar a assistência técnica; continuar o desembolso de financiamentos.” Os poderes dos Estados Unidos sobre o destino brasileiro não foram, portanto, vastos a ponto de modelar num país estrangeiro um regime ao qual, num certo tempo, eles concederam um entusiástico apoio.

Os documentos que vêm à tona graças à doação do Presidente Johnson levantam muito mais questões pelo lado americano da his­tória. do que pelo lado brasileiro. Vista daqui, a documentação mostra que a ligação entre a Embaixada e os conspiradores era, no mínimo, eficiente. Certamente a Embaixada tinha também ligações de alguma eficiência do outro lado. Só assim poderia saber quando troca­vam os telefones do Batalhão da Guarda Presidencial de Brasília ou acompanhar com precisão os passos e os telefonemas de Goulart. A Operação Brother Sam e a decisão do Governo argentino de pedir uma intervenção da OEA abrem a possibilidade de que, havendo uma guerra civil no Brasil naqueles dias, ela teria em seu cenário personagens estrangeiros. Se o porta-aviões Forrestal estava pronto a agir como na República Dominicana, a documentação não oferece dados positivos (nem negativos).

De qualquer forma, a questão abre-se para a discussão do fun­cionamento da máquina americana. Até que ponto Bundy, Alexis Johnson e Thomas Mann, hábeis homens de Washington, não esta­vam no Situation Room da Casa Branca, recebendo informações pouco precisas mandadas por uma rede de informantes? Até que ponto Gordon acreditou que seria possível tirar Goulart e deixar tudo mais ou menos como antes? A relação de correspondência entre o funcionamento dos serviços de segurança americanos e a Casa Branca deixa, no caso brasileiro, pelo menos algumas dúvidas.

O monumento a essa dúvida é uma pequena frase. Um instante da teleconferência de 2 de abril. Quando Washington mandou retirar da nota que Johnson divulgaria horas depois a expressão “pelo cami­nho constitucional”, Bundy sabia o que isso significava? Gordon sabia?

Nenhum dos dois pode responder com perfeição a essa pergun­ta. No entanto, quando uma pessoa tira de uma nota uma expressão como essa, contribui, de alguma forma, para que se tire do caminho constitucional o sujeito da nota, seja ele qual for.

EUA mobilizaram frota para o Brasil em 1964

Entre os 31 milhões de documentos que a Biblioteca Lyndon Baines Johnson guarda em Austin, no Texas, da passagem do Presidente pela Casa Branca, 17 comunicados do Estado-Maior Conjunto norte-americano registram a operação militar que, no dia 31 de março de 1964, foi acionada para “marcar a presença dos Edtados Unidos” no litoral brasileiro durante os dias em que o Governo Goulart caía.

Ela tinha um nome em código – Brother Sam (Irmão Sam). Mobilizou um porta-aviões, seis destróieres, um navio para transporte de helicópteros e quatro petroleiros. E ainda seis aviões de carga, oito de abastecimento, um de comunicações, oito caças e um posto de comando aerotransportado. Previu embarques de munição e um re­forço de carabinas calibre 12 carregado para Porto Rico.

O Comando-Geral da operação foi entregue ao General-de-Di­visão George S. Brown e de seus detalhes a Casa Branca tomou co­nhecimento através de um breve memorando endereçado ao Assessor Especial de Segurança Nacional, McGeorge Bundy. A Brother Sam não entrou em ação efetiva: foi gradualmente desmobilizada a partir do dia 2 de abril, quando ainda se encontrava distante do ponto da cos­ta brasileira para o qual se dirigia: Santos, no Brasil. Os navios deve­riam chegar entre 8 e 11 ao objetivo da missão.

O marinheiro

Mesmo sem ter sido disparada, a Brother Sarn fez parte muito tempo do rol de assuntos que eventualmente afloravam na discussão do movimento revolucionário brasileiro e da política externa norte-americana. Thomas Skidmore, um brasilianista que passara a noite de 31 de março hospedado com o Embaixador Lincoln Gordon, revelou num artigo da época que chegara a haver consultas entre os conspiradores brasileiros e diplomatas americanos sobre a possibili­dade de que o Governo dos Estados Unidos pudesse dar apoio ma­terial à Revolução.

Quatro anos mais tarde, o ex-Governador Carlos Lacerda parti­cipava de uma entrevista no programa Firing Line, de Willin Buckley Jr., quando do auditório um marinheiro afirmou que se achava a bordo de um navio no Caribe, às vésperas da Revolução, e recebera ordens de rumar para a costa brasileira.

Durante muito tempo, esse aparte num programa de televisão foi tudo quanto de concreto se ouviu falar a respeito da Operação Brother Sam. Sem contar o depoimento de alguns líderes revolucioná­rios, como o General Olímpio Mourão Filho, que admitiu ter “ouvido falar da possibilidade de aproximação de uma esquadra” americana. Ele negava, no entanto, que qualquer auxílio militar tivesse sido pres­tado ao Movimento – o que é exato.

A operação

Os documentos referentes à mobilização da força-tarefa que se diri­giu ao Brasil, à época reservados ou secretos, estão hoje abertos à pesquisa na Biblioteca Lyndon Johnson. Sua leitura confirma a exis­tência da operação – e até a palavra do marinheiro: o Caribe foi, de fato, o ponto de partida de uma parte da esquadra.

Ela descobre também o objetivo básico da Brother Sam, que não era de apoio bélico, mas estratégico. Havia o temor de que o Movimento no Brasil viesse a ser derrotado pela falta de combustível, se as lutas se por muito tempo. De resto, os papéis do Estado-Maior Conjunto norte-americano falam “em apoio logístico total ao Brasil”.

Eles especificam a natureza desse apoio logístico, em ordem de 31 de março. Naquela noite, o petroleiro Santa Inez receberia no porto de Aruba, no Caribe, 40 mil barris de gasolina comum, 15 mil barris de gasolina de aviação, 33 mil barris de óleo diesel e 20 mil barris de querosene. Dali pegaria a rota para Montevidéu, advertido de que “o destino real seria revelado mais tarde”.

Outro petroleiro, o Chepacket, traria 35 mil barris de querosene, 40 mil de gasolina comum e 33 mil da de aviação. O terceiro barco, Hampton Road, preparado para porto de pequeno calado, carregaria 150 mil barris. E o quarto, Nash Bulk, 56 mil barris de gasolina comum, 39 mil de gasolina de aviação e 92 mil de querosene. Também estes rumariam, em princípio, para o Uruguai, à espera de novas instruções.

O apoio

Uma base para o cálculo do que esse carregamento representaria pode ser tirada da quantidade de gasolina comum que, juntos, os quatro petroleiros transportavam: 136 mil barris – correspondente a um dia de consumo atual de todo o Brasil.

O Santa Inez, que chegaria entre 10 e 11 de abril ao destino, esta­va pronto para zarpar de Aruba no dia 2 de abril, pela manhã, quan­do o Governo dos Estados Unidos já preparava o reconhecimento do Comando Revolucionário que assumira com a queda de João Goulart. E o Santa Inez seria o primeiro barco a chegar. Não há registro que essa carga tenha sido desembarcada.

Há mais de um indício de que o desembarque de combustível constituísse o centro, ainda que não o todo da Brother Sam. Por exemplo, após o comunicado que dava conta da data provável de chegada do petroleiro Santa Inez à vizinhança de Santos, uma ordem do Co­mando-em-Chefe da Esquadra do Atlântico estabelecia o plano de rota do porta-aviões Forrestal: estaria na costa brasileira no mesmo dia 11. Aparentemente, boa parte do aparato militar que cercava a operação destinava-se a garantir o desembarque de combustível. O Forrestal partiria de Norfolk, na Virgínia, e sua viagem estava sincronizada com a do Santa Inez para convergir para o mesmo ponto, no mesmo dia.

O embarque de munição é apresentado, num comunicado do Es­tado-Maior Conjunto à Força Aérea, como missão de apoio ao plano operacional de que a Força-Tarefa Naval fora encarregada. Destinam­-se à Brother Sam 110 toneladas de armas e munições. E há mensagem que fala em “encaixotar 250 carabinas de calibre 12, consignar em­barque para Brother Sam e enviar por via aérea à Base Ramey, em Porto Rico”. A data é 10 de abril. No dia seguinte, quando toda a ope­ração começa a ser desmobilizada, uma outra ordem à Força Aérea não suspende imediatamente o envio de armas: elas deveriam ficar guardadas em Fort Dix ou na Base McGuire, em Nova Jérsei, da For­ça Aérea, ou na Base Ramey. Essa parece ter sido a última parte da Brother Sam a ser recolhida.

Na tarde de 3 de abril, um comunicado recomendava: “110 toneladas de munição e armas continuarão relidas na Base McGuire, enquanto o Embaixador Gordon determina se as Forças militares bra­sileiras precisarão de um apoio americano antecipado”. E mantém­-se a Força-Tarefa até a tarde do dia 3 de abril, quando uma manobra simulada encobre e disfarça toda a operação finalmente cancelada. E, a essa altura, já não estava em missão apoio ao desembarque de combustível.

Os papéis do Estado- Maior Conjunto norte-americano revelam que, nos dias da queda do Governo Goulart, os Estados Unidos tinham um plano de emergência pronto para influenciar no Brasil. Mas a existência da Brother Sam pode ser vista hoje do ângulo de outro documento também guardado na Biblioteca Lyndon Johnson. É um telex dirigido ao Departamento de Estado no qual, como costuma acontecer na América Latina, se revela a disposição do Governo argentino em pedir, através da OEA, a intervenção no Brasil, se ocorresse no país uma guerra civil. Esse despacho situa a operação Brother Sam na época e no continente.

Marcos Sá Corrêa – originalmente publicada pelo Jornal do Brasil em 19 de dezembro de 1976.

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